A FERA NA SELVA - HENRY JAMES ( VIVER NÃO DÓI )

Devastador. Esta novela ( 70 páginas ) do maior escritor americano da história, é devastadora. Qual é o segredo da escrita de James ? Não há como saber, ele dá voltas, vai de ponta a ponta, disseca aquilo que a personagem sente, descreve o que ela pensa, divaga um pouco, dá mais voltas, aprofunda-se, faz-se símbolo e de súbito, clareia tudo. É um modo de escrever, um estilo, insuperável. Apenas Proust ou Stendhal escrevem tão bem. No meio da leitura pensei em quartetos de cordas.
Este livro traz a história de um casal. Um casal que travou contato em Nápoles, dez anos antes. Se reencontram em Londres e reatam sua amizade. Ele tem a crença de que um tipo de "fera" irá saltar sobre seu corpo. Algo de muito cruel e urgente irá lhe acontecer. Por causa disso, ele passa a vida com apreensão e mantém aparência controlada, distante. Ela se torna sua confidente, faz-se uma cumplicidade.
Os anos passam, a situação se mantém ( e nós intuimos que ela o ama com paixão ) e quando ela morre algo de muito terrível acontece. A maldição se cumpre.
Em autor sem gênio seria apenas a história de um homem egoísta e sua relação com amiga que o ama. Em Henry James isso se torna cósmico. Ele jamais nos conta o que está se passando, apenas vai nos dando pistas, nos ensinando a ver, deixando-nos em dúvida e rumando, sem hesitação, para o único e horrendo fim possível.
Não vou, mais uma vez, falar da beleza superlativa da escrita de James. O que vou é citar uma frase deste livro admirável :
" Não seria o fracasso ir a falência, ser humilhado, exposto ao ridiculo, acabar na forca; o fracasso era não ser coisa alguma."
Em meras 70 páginas, esse gênio da escrita, nos exibe sem dó ou afetação, a dilacerada vida de alguém que nada foi pois nada precisou ser. O egoismo inocente dando impotência e morte a um homem tolo, distraído, ausente.
No fim dessas poucas páginas, que possuem peso de saga, está explícita a dor de não se saber como viver. E genialmente, Henry James nos convence que tudo pode ser suportado em vida; a injustiça, a fome ou a violência. Mas que a dor da covardia, de ter se vivido na virtualidade do que iria ser e nunca foi, do que aconteceria e jamais aconteceu, essa dor é a dor das dores, a dor de não se ter um rosto, de, como o personagem percebe tarde demais, nunca se ter chorado uma dor real, nunca se ter deixado estravazar uma emoção inteira.
O livro, lido em duas horas com fome e paixão, é uma obra-prima.
PS : Que bela edição da Cosac Naify ! A capa em cor de mármore ( o mármore fecha o relato ), o texto começando em páginas finas e brancas e terminando em papel negro e grosso. A cada página que viramos o papel vai se tornando cada vez mais escuro, indo do branco ao prata, ao cinza e ao chumbo, e a textura, o peso, cada vez maior. Exemplo perfeito de projeto gráfico que não é apenas bonito, ele se integra ao que se lê. Nota dez. Digno de Henry James.